Prof. Doutor Ário Lobo de Azevedo

Das conversas havidas com os organizadores do colóquio ficou-me a ideia que, em vez de se tentar fazer a história da Universidade de Évora, se deveria talvez abordar la petite histoire como forma  de contribuição para essa história, referindo-se pequenos episódios, uns meramente acidentais outros não,  que possam ter importância para a vida da instituição mas que não constituem o fio essencial da meada. Assim sendo vou principalmente referir alguns desses incidentes.

Começo por recordar que em meados da década de 50, mais exactamente em 1955, fui abordado pelo professor Francisco Caldeira Cabral, colega de curso e amigo do engº Vasco Maria Eugénio de Almeida que me pediu que o ajudasse a preparar a organização de um curso superior de agricultura em Évora. E dediquei-me a essa tarefa.

Uma das coisas que fiz foi a carta de solos da Herdade dos Pinheiros e sei hoje que durante muitos anos a Fundação Eugénio de Almeida desconheceu a existência dessa carta de solos. Dediquei-me ao estudo da criação de cursos superiores de agricultura em Évora e dada a influência do ensino alemão na formação de Caldeira Cabral, organizei os meus programas e as minhas propostas de acordo com o esquema alemão da Fachschule e da  Hochschule.

Isto teve repercussões porque mais tarde quando como Reitor do Instituto Universitário de Évora  ao negociar com o Instituto Politécnico de Vila Real as questões relacionadas entre o ensino politécnico e o ensino universitário, o que aliás estava previsto na lei – o Decreto Lei nº 402/73 – tal serviu-me de muito,  foi muito útil para que essas negociações tivessem sido conduzidas a bom termo. E foi aquele o meu primeiro contacto com a criação do ensino universitário em Évora.

Mais tarde trabalhei no GEPAE (Gabinete de Estudos e Planeamento da Acção Educativa), para onde fui levado pela mão de Eugénio de Castro Caldas, onde fiz muitos amigos.

O professor Veiga Simão tem toda a razão quando afirma que o GEPAE era a coisa mais heterógenea que se pode imaginar. Trabalhei ali sempre como voluntário , um dos meus companheiros era o Rui Grácio, meu amigo de infância, outros o Amaro da Costa, Fraústo da Silva e Helena Roseta, Tavares Emídio e Prostes da Fonseca. Muitas e variadas gentes, num ambiente de trabalho de plena liberdade e relembrando agora esse tempo e reflectindo sobre o que se passou, posso dizer que como então não tinhamos esperança alguma do imediato aproveitamento do nosso trabalho, inventávamos as hipóteses mais absurdas e estudámos os problemas mais abstratos que se poderiam imaginar, propostas avançadas, propostas retrógradas, assim deliberadamente formuladas. E esse trabalho não foi imediatamente utilizado. Só muito mais tarde é que esse enorme volume de trabalho  acumulado encontrou alguém que  o soube aproveitar e utilizar o que ali havia de útil e esse alguém foi o Ministro Veiga Simão.

Conheci Veiga Simão em Moçambique.

Tivemos encontros e desencontros como disse o Carlos Portas há tempos. Em Moçambique tive grandes desencontros com Veiga Simão, podia dizer mesmo conflitos. Não percebi nessa altura a filosofia dele e a estratégia e a táctica que seguia. Eu estava nitidamente afectado pelo fracasso do projecto  de Venâncio Deslandes,  para quem eu trabalhara, visando a criação de ensino superior em Angola, projecto que fora chumbado.

Uns anos depois voltei para Portugal, não tive qualquer intervenção no estudo do levantamento da nova rede do ensino superior. Um dia, o ministro Veiga Simão telefona para o Instituto Superior de Agronomia a pedir informações e foi o professor Ário  Azevedo quem lhas facultou. E o incidente repetiu-se. E devido às qualidades de Veiga Simão, nomeadamente das suas qualidades humanas, chamou-me para seu colaborador. E fui seu colaborador.E lembro-me perfeitamente que uma das primeiras coisas que me mostrou foi o projecto daquilo que veio a ser o  Decreto-Lei 402/73.

E aqui uma petite histoire. Li o projecto, gostei dele, onde entre outras coisas estava a já referida ligação entre os ensinos universitários e os ensinos politécnicos, a caracterização da figura de instituto universitário, com a qual concordei plenamente e cheguei mesmo a dizer que todos os novos estebelecimentos universitários deveriam começar por serem institutos universitários.

Mas protestei criticando  outros pequenos pormenores. Falei com Veiga Simão, não me lembro agora  deles todos, mas há um que não mais esqueci e que é o seguinte: enquanto que para a Universidade do Minho a Biblioteca Pública de Braga era integrada na Universidade, no Instituto Universitário de Évora não era integrada a Biblioteca Pública de Évora. E perguntei porque é que tal acontecia e fiz a proposta de ser também contemplada a sua integração. E o professor Veiga Simão aceitou. E agora a pequenina história (tenho para a contar a necessária licença): no Conselho de Ministros alguém discorda e usou , por outras razões, este argumento  muito estranho ( não era de facto esta a razão, mas o argumento não deixa de ser curioso): no Instituto Universitário de Évora vai haver Faculdade de Letras? Não. Então não precisa da Biblioteca.

Dois ou três anos depois, era Secretário de Estado da Educação António Brotas, consigo convecê-lo das vantagens da integração da Biblioteca  Pública de Évora na Universidade. E o António Brotas leva-me ao gabinete do Secretário de Estado da Cultura a quem pusemos o problema. O Secretário de Estado não tem argumentos a contrapor ao nosso pedido e busca uma solução burocrática; chama o Director Geral, um convertido de fresca data, que responde secamente ao problema que lhe é posto: a Biblioteca Pública está ao serviço do povo, a Universidade ao serviço das elites, não concordo. E sai porta fora. E não se fez a integração.

São algumas petites histoires e não deixa de ser curioso serem referidas.

Quando vim para Évora contactei com o ISESE (Instituto Superior de Economia e Sociologia de Évora), com o qual  aliás já tinha tido contactos, e  uma das nossas primeiras preocupações foi estabelecer a tal aliança – podemos mesmo dizer concordata – de trabalho. Era para nós um dos instrumentos fundamentais para a instituição do Instituto Universitário de Évora esta associação com o ISESE.  E uma reflexão que nessa altura foi feita e agora mais justificada por acontecimentos posteriores: não deixa de ser curioso o ISESE ser uma institução apoiada por uma fundação. A ideia de haver uma fundação atrás da instituição universitária já existia nessa altura e queriamos dela tirar pleno partido, explorando as vantagens que de ali podiam advir.

Depois pôs-se o problema da instalação. Analisamos com cuidado a questão e foram ouvidas várias pessoas e uma das que mais influência teve sobre a Comissão Instaladora foi o arquitecto Nuno Portas, um dos nossos primeiros conselheiros que nos disse, e a frase é dele, insiram a Universidade na urbe. E disse mais, há bons edifícios na cidade de Évora e é mais barato recuperar bons edifícios do que construir edifícios de raiz. Mais tarde, cerca de três anos depois, foi possível demonstrar ao Ministro da Educação de então que o património da Universidade de Évora era maior do que o de muitas outras Universidades novas e com muito menores encargos de investimento.

Nessa altura também a Comissão Instaladora se deu ao trabalho de tentar conhecer o património que pertenceu à antiga Universidade de Évora, e novamente uma petite histoire. O edifício do Colégio do Espírito Santo devoluto pela proscrição dos jesuítas fica na posse do corregedor da comarca de Évora e foi depois entregue à Congregação da Missão, passando para a posse do Estado após a abolição das ordens religiosas.  Mas a Universidade era muito rica: as casas da Rua da Carreira do Colégio (actual Rua do Conde da Serra da Tourega), as da Rua do Cardeal Rei,  Quinta dos Apóstolos (um pedaço da Quinta do Louredo), o edifício da esquina do Largo do Colégio com a Rua do Conde da Serra do Tourega, a sudoeste da igreja do Espírito Santo, era o açougue da Universidade (açougue com o sentido antigo, derivado do árabe, de mercado abastecedor de géneros alimentares),  tinha ainda propriedades em Montemor e outros locais do Alentejo, a vila de Sobral de Monte Agraço pagava foro à Universidade de Évora. A Universidade tinha assim um património próprio muito importante. E tudo ou quase tudo despareceu.

Foi aqui dito que foi o Marquês de Pombal quem extinguiu a antiga Universidade de Évora. E é deste modo que geralmente a questão é apresentada. O encerramento da Universidade tem um percurso complexo e como regra não é claramente exposto. O Marquês expulsou os jesuítas da Universidade (e diz-se que de uma forma algo violenta) mas entregou as “chaves da arca” da Universidade de Évora, isto é, a administração e a gestão dos seus bens à Universidade de Coimbra. E foi esta quem de facto extinguiu a Universidade de Évora, com a venda inclusivé do seu património próprio, repito muito avultado, mas não o edifício do Colégio do Espírito Santo na posse do Estado. Não  foi o Marquês de Pombal que extinguiu de facto a Universidade de Évora. Mas há quem diga que o Marquês de Pombal era mais maquiavélico do que Maquiavel.

Mas voltemos à Universidade de Évora reinstaurada e a outras petites histoires. Um dia como Reitor e estando no Ministério da Educação o então Subdirector –Geral, de quem eu era amigo e tinha a maior confiança comigo, diz-me: amigo Ário Azevedo V. vai ter um dia difícil, em cima da mesa do Ministro está a proposta de extinção da Universidade de Évora; há quem não concorde com a sua criação nem com o que lá se está a passar. Mas aqui há um elemento que jogou a meu favor. O ministro chamava-se Vitorino Magalhães Godinho e o que muito poucas pessoas sabiam (e os autores da proposta não sabiam) era que uma das primeiras pessoas com quem contactara quando fui desafiado para vir para Évora fora  Vitorino Magalhães Godinho, que conhecia desde a origem os projectos e o esquema gizado para a Universidade de Évora. O Ministro conferenciou comigo e analisámos demoradamente as questões relacionadas com a Universidade em instalação. O Ministro nunca me referiu essa proposta, mas o  despacho que mais tarde até mim chegou leva-me a concluir que ele tinha de facto estudado cuidadosamente a proposta de extinção, não concordara com ela,  acabando por autorizar o arranque dos primeiros cursos a serem professados em Évora.

Outro aspecto curioso que ocorreu logo no início da vida da Universidade e que resultava da inovação criada pelo Decreto-Lei 402/73 de as novas instituições universitárias terem autonomia financeira e administrativa era o das dificuldades resultantes dos problemas de gestão e de organização do trabalho administrativo interno. Pedi que fossem nomeados Vice-Reitores. E aqui verificam-se mais uma vez as situações derivadas do facto vir antes do direito e de aparecerem situações novas que a lei existente não regula, continuando as questões a serem julgadas pelas leis antigas não adequadas ao caso novo. E responderam-me que não podia ter Vice-Reitores por não ter alunos em número suficiente, só podia ter um Vice-Reitor por cada 2500 alunos.

Mais uma vez valeu o conhecimento que entre nós havia do modelo organizativo das universidades alemãs. E assim inventámos os Pró-Reitores. A Comissão Instaladora decidiu que haveria Pró-Reitores, com tarefas bem definidas em despachos e ordens de serviço internas onde se balizavam os espaços e as competências delegadas e os poderes concedidos. Na altura foi um escandalo, mas hoje a figura do Pró-Reitor está consignada na lei.
Viemos para aqui há vinte e cinco anos atrás e estão aqui hoje algumas das pessoas que então embarcaram nesta aventura. Éramos bastante mais novos e sonhávamos com uma universidade. E posso referir alguns dos sonhos que tivémos nessa altura.

O de a Universidade de Évora vinte anos depois atingir seis a oito mil alunos. Era uma hipótese e trabalhamos no sentido de a ver realizada. Mas também tinhamos outro sonho: gigantismo não, mais de 10.000 alunos não, porque se este número for ultrapassado a universidade é ingovernável e desumana. Não deixa de ser curioso de na Universidade da Califórnia cada campus não ultrapassa em regra 10.000 alunos, tendo hoje esta universidade dezasseis campus independentes. E de todos eles o que mais me encanta foi o de Riverside que não tem mais de 6.000, satisfazendo no entanto os requisitos de um land grant college.

Tinhamos também consciência do profundo corporativismo que reinava nas universidades e com grande surpresa de muitos, ou talvez não, o corporativismo está muito mais arreigado hoje nas universidade do que em 1974.

Disse há pouco que quando viemos para aqui éramos novos. Éramos novos,  não éramos “nada”.  Mas tinhamos sonhos e, como aqui foi dito uma vez, para esta universidade tínhamos em nós “todos os sonhos do mundo”.