Prof. Doutor Veiga Simão

Em 1º lugar quero agradecer o convite para estar presente nesta comemoração dos vinte e cinco anos da Universidade de Évora. Em particular aproveito a oportunidade para responder ao artigo intitulado “Cavaleiro de Tróia” do meu amigo e Reitor Jorge Araújo e ao desafio saudável de troca de ideias nele implícito. Na verdade coloca determinadas questões subjacentes à criação desta universidade, expressa legitimas dúvidas e faz algumas reflexões que merecem análise.

Desde logo situa um problema. O Sr. Reitor diz que nasce legitimamente a suspeita de que o Ministro prossegue uma estratégia de subversão do regime, que as novas universidades criadas possam vir a portar-se como cavaleiros de Tróia do regime e,  à laia de crítica saudável diz, que sabendo-se como é difícil a constituição do corpo docente de uma Universidade, quer pela dimensão numérica e diversidade de saberes, quer pela qualificação pedagógica, eu não me deveria ofender - e não me ofendo, se for questionado acerca da perspectiva que então me assistia nessas criações. Acrescenta que o que salvou o projecto foi a descolonização e que as Universidades de Lourenço Marques e Angola foram viveiros das novas universidades. E comenta que se tal não tivesse acontecido, o regime que as criou também as teria engolido e assim não teriam singrado.

Estas questões estão no âmago das polémicas que se viviam na altura e relacionam-se com as possibilidades que o Ministro da Educação teria em realizar a reforma.

Antes de entrar neste assunto quero prestar a minha homenagem à Igreja Católica e aos Jesuítas que mantiveram acesa a chama educativa em Évora, do que são exemplos o Prof. Craveiro da Silva, o Prof. Augusto Silva e o Prof. António Silva. Também não posso deixar de referir neste momento o grande orgulho que tenho ao ver, por razões múltiplas e variadas, por ventura não serão as razões que previ naquele tempo e ainda bem, esta universidade consolidar-se e afirmar-se não só no plano regional e nacional mas também internacionalmente.

Vejamos então os tempos em que fui Ministro da Educação. O Prof. Marcelo Caetano realizou os primeiros cursos de Verão em África a cargo da Universidade de Lisboa, e eu integrei os segundos cursos então chefiados pelo reitor Braga da Cruz da Universidade de Coimbra. A visão que tive de Angola e Moçambique levantou-me muitas interrogações. Como era possível não apostar no desenvolvimento educativo daqueles homens e mulheres que povoavam aqueles vastos territórios? Apresentei no Conselho da Faculdade uma moção que propunha a criação de uma Universidade em Angola e outra em Moçambique. Nessa altura fazia investigação em algo que nem sempre queremos ouvir falar; investigação nuclear, ligada à estrutura da matéria e à origem da natureza, e preparava-me para ir para os Estados Unidos. Depois de ter recebido o convite de Adriano Moreira e após a sua saída do Governo, o Dr. Salazar mandou-me chamar e disse–me o seguinte perante a minha hesitação: o Sr. Doutor deve ser fiel ao que propôs, por outro lado muitos dos seus colegas estão em África, com a sua idade a prestar serviço ao país. Tinha 33 anos e era professor catedrático há dois anos.

Em 1962 fundou-se uma universidade de que muito me orgulho; Universidade de Lourenço Marques onde tive como colaboradores muitas das pessoas que mais tarde se notabilizaram nas novas Universidades.

A minha opção como Ministro da Educação, era muito simples e conhecida dos Portugueses: não temos o direito de manter Portugal onde a inteligência se perde, onde não há escolas suficientes para que centenas de milhares de jovens possam beneficiar de direitos elementares, onde, como dizia Aquilino Ribeiro, a inteligência se congela nos rios do interior.

Desenvolver uma reforma educativa não era tarefa fácil, já que o poder político tinha no seu seio forças contrárias muito poderosas, e eu tinha que conquistar professores e a confiança do país. Não partia de qualquer base legislativa a  minha reforma. A Constituição  de 1933 falava vagamente na educação e instrução obrigatórias como pertencentes à família e a instituições sociais e particulares. Apenas o ensino primário elementar era obrigatório. Como Ministro não tinha força política para promover alterações constitucionais. Na revisão de 1971 o máximo possível foi o de explicitar que o Estado procurará assegurar a todos os cidadãos acesso  aos bens de educação e cultura, introduzindo pela 1ª vez o conceito do ensino básico ser o ensino obrigatório. Sem bases constitucionais para desenvolver a reforma, como fazer? A reforma não podia obedecer só a tentativas de lutar por uma lei que depois de aprovada fosse  posta em vigor. A estratégia foi completamente diferente. Em 1970 desencadeei uma série de acções no quadro do que devia ser a reforma educativa baseando-me num decreto lei relacionado com experiência pedagógica. A lei desenvolvia o ensino Pré - Escolar até ao ensino superior.
A Lei de Bases do Sistema Educativo foi uma  forma de compensar a Constituição Política, a forma de sustentar a reforma, no futuro, de a consolidar, de defender a existência de uma lei do sistema educativo para dinamizar o processo de expansão e diversificação. Foram elaborados dois documentos base e foram colocados à discussão em todo o país. Embora as condições do país fossem, por imposição, pouco sensíveis à critica e à discussão, houve grande adesão aos debates.

A bandeira da reforma educativa aglutinou vontades e tendências, mesmo algumas que eram contrárias ao regime. O Ensino Superior localizava-se apenas em três cidades até aos anos 70; Lisboa, Porto e Coimbra, embora houvesse alguns cursos de Teologia, cujo funcionamento era garantido pelos Jesuítas. Houve que criar cursos, que faltavam nas universidades existentes, que criar universidades noutros pontos do país e reconhecer a Universidade Católica,  num processo muito controverso.

Analisemos a problemática das Novas Universidades. Sr. Reitor, criar uma universidade implica uma estratégia e uma visão de futuro. As suas perguntas sobre as Universidades Novas podem aplicar-se também às Universidades de Moçambique e Angola ao tempo que foram criadas. Repare-se na anarquia instalada actualmente na criação de cursos e universidades. Começar uma universidade implica um esforço de credibilização dos primeiros anos. É inacreditável que os melhores professores evitem as aulas aos primeiros anos, acabando por ficar só com pequenos grupos dos últimos anos. Por isso é tão importante atrair o núcleo duro dos melhores professores para os primeiros anos. Acreditar na juventude, na de ontem, hoje e amanhã, acreditar que também eles serão bons professores e que perpetuarão os ciclos educativos. Na altura da criação  da Universidade de Moçambique, elaborei um programa de doutoramentos no estrangeiro e em sete anos doutoram-se mais professores do que em dezenas de anos nas universidades ao longo do tempo. Apostar nos valores locais, apostar na qualificação do pessoal docente, chamar a comunidade à universidade e exercer acções pedagógicas sob o meio. E se nem tudo pode ser excelente, uma universidade deve ter núcleos de excelência. Isto quer dizer que  a primeira preocupação de uma Universidade nova deve ser a de criar um escol de “doutores”. Apostar em jovens licenciados com mérito, valorizar personalidades locais, procurar apoio de professores de mérito e, se necessário, como estava previsto para a Universidade Nova de Lisboa começar por uma Escola pós-graduada.

As palavras que proferi na abertura Institutos Universitários, e que o Sr. Reitor qualificou, amistosamente, de subversivas, podem repetir-se hoje aqui, pois que elas não são mais do que a expressão daquilo que eu pensava, do que eu queria, e simbolizavam contra ventos e marés o  que era necessário fazer.
Quando apresentei em Conselho de Ministros a proposta que previa a expansão e diversificação do Ensino Superior, tive que enfrentar muitas dificuldades. Os estudos técnicos sustentavam, com um conjunto de indicadores demográficos e de actividade sócio-económico que as universidades deveriam ser criadas no Litoral, onde se concentravam o desenvolvimento. Assim sendo, Évora não tinha lugar. A minha argumentação  baseou-se na defesa dos valores humanos existentes, numa estratégia para chamar a universidade ao desempenho de motora do desenvolvimento desta região, favorecendo da fixação de gente qualificada. Um desempenho cultural e económico num quadro de Economia regional, nacional e internacional.

Quero também prestar a minha homenagem ao Conde de Vilalva e aos meus amigos que foram protagonistas deste processo. A ideia inicial foi a de desenvolver uma estrutura orgânica, que resultasse numa associação entre entidades públicas e privadas, constituindo-se a Universidade de Évora, como parceiro de eleição para o Alentejo. Não era só uma criação era também uma restauração.

Sr. Reitor eu não queria subverter o regime, eu queria que ele mudasse.  Eu queria que os Portugueses, mais esclarecidos e conscientes lutassem pela democracia. Naquela altura cheguei a dizer em Inglaterra numa entrevista então publicada  ”quando os estudantes contestam a qualidade do ensino é preciso dar muita atenção a essa contestação e eu sou por ela...”, e foi um escândalo. E, em maré de confissões quero dizer o Decreto-Lei 402/73 que criou a Universidades e os Institutos Politécnicos em 1973 foi rejeitado em Conselho de Ministros. Apenas dois Ministros me apoiaram. Muitos argumentos contra; entre os quais o de que eu queria espalhar a subversão pelo país, e de que após Maio de 68 se assistia a medidas estritivas nos países democráticos quanto à educação, o que não justificava a criação de mais universidades. Escrevi então uma carta ao Prof. Marcelo Caetano pedindo a minha exoneração do cargo. Chamado a sua casa, o Professor disse-me que o Decreto estava aprovado e eu podia ir anunciá-lo à televisão. Ainda bem. O futuro precisava da justiça duma Universidade em Évora. Parabéns  a todos.